domingo, 28 de abril de 2013

[Conto] Augustine acorda no inferno

Estando no Inferno, é impossível sonhar. O que acontece é que, ao acordar, as sensações físicas e psicológicas se entrelaçam sem possibilidade de você jamais poder voltar a separá-las. Conforme Augustine acordava, o calor a dominou avassalador, como se o fogo tivesse substituído o ar. Como é que ela conseguia respirar?
A sensação da quente e palpável substância que agora habitava os espaços vazios do mundo onde estava, era tão castigadora, malévola e insuportável que seria melhor perder a capacidade de respirar de uma vez por todas.

Os olhos demoraram-se a abrir, mas também sofriam com a luz alaranjada aterradora que caía sobre suas finas pálpebras. Ao mesmo tempo em que abriu os olhos, os sons de pedidos por misericórdia abafaram sua audição. Gritos de uma dor lancinante, de um desespero imortal.

"O que estou fazendo aqui?"

Lembrou-se de sua casa, tão confortável. Orgulhava-se da posição das janelas, que lhe permitiam sempre uma brisa agradável, deixando a casa fresquinha durante o verão e a primavera. Lembrou-se de acordar cedo aos domingos, e observar a calma com que as cortinas brancas balançavam ao sabor do menor sopro de vento. Lembrou-se de como era bom avistar, desde o fim da rua, seu telhado marronzinho, as paredes verdes e a expectativa de um bom banho, quando vinha chegando cansada do trabalho, caminhando pela rua pacata.

E lembrou-se do demônio. O bafo quente em sua nuca. Os olhos que dançavam na escuridão.

"Eu morri?"



Segundo a Bíblia, ao pé da letra, não havia Inferno. Inferno era uma invenção da Igreja Católica na era Medieval, ou talvez fosse dos gregos. O Hades, terra dos mortos. Mas o que era esse lugar? Sua visão ainda não conseguia distinguir a aparente lava que formava paredões alaranjados, corpos cambaleantes, em fogo vivo, estendendo os braços em todas as direções, como se estivessem correndo atrás de garçons em um restaurante lotado. E estavam com muita fome. Abaixo, um chão que se remexia, assim como as paredes, mas era mais escuro, uma mistura de rios de lava com rios de sangue e pedaços de pessoas. Acima, uma luz ofuscante, esbranquiçada, parecia julgar tudo abaixo dela.

Levantou as mãos em frente aos olhos e surpreendeu-se de imediato. Teve medo de que estivesse como aquelas criaturas que andavam sem rumo, feito pessoas carbonizadas, mas ainda pegando fogo. Mas não. Sua pele estava brilhando, linda, viva, lisa e com a aparência mais macia que jamais pode alcançar com dezenas de cremes e loções. Usava um vestido longo, com um enorme decote na coxa. Apesar do calor, não suava. Ao levantar-se, notou como eram graciosos e precisos seus movimentos. Seus seios pareciam mais firmes e até maiores, sua cintura estava mais fina, suas coxas mais grossas. Passou a mão pelos cabelos  de um ruivo dourado e notou como estavam sedosos, com a superfície agradabilíssima ao toque.

Milhões de dúvidas lhe atingiam, mas a teoria que seu cérebro aceitou de imediato é que assim começava o martírio no Inferno. Da beleza absoluta e inumana à feiura e o terror de um morto-vivo em chamas. Olhou muito para as unhas cor de laranja, combinando com a lava, admirando o brilho que provocavam, tentando memorizar aquilo tudo, para ter algo bom a se lembrar quando alcançasse o estado de decomposição sem fim.

Não tinha lágrimas para chorar e não sabia o que fazer. Sentou-se novamente, notando que o calor já fazia parte dela, e ela dele. Enquanto alisava o vestido, fazendo-o circundar seu corpo, ouviu passos mais firmes que os das criaturas, e notou que a lava parecia mais agitada. O branco que formava o teto no alto retraiu-se, envergonhado ou até... temeroso. Por trás dela, novamente, uma criatura maligna manifestava-se.

_ Seja bem vinda, minha Rainha. Salve, Rainha! Mãe da Misericórdia! - ironizou a voz de rouquidão cortante.

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Tá quente aqui, né?