domingo, 14 de abril de 2013

[Conto] Augustine é levada para o Inferno

Limpou os óculos na flanela da blusa, uma última vez, esperançosa de que o que via era apenas uma mancha de gordura nas lentes gastas. Mas não era. Quando retomou a nitidez, ainda viu um demônio agachado atrás das latas e sacos de lixo, do outro lado da rua. Devia ter dois metros e meio de altura, mas estava encurvado sobre si mesmo, com as mãos enormes arrastando-se no chão. O rosto era indefinido àquela distância, mas talvez fosse uma regra do submundo: apenas mostre o quanto seus olhos são vermelhos aos humanos.

A questão agora, para a pobre Augustine, era saber se estava protegida por suas paredes, portas e janelas, ou se era questão de tempo até ele saltar por sobre ela, com aquelas garras e a bocarra cheia de saliva grossa e esverdeada. Parecia respirar com dificuldade, mas não aparentava ser por cansaço e sim por tensão. Talvez estivesse faminto de carne. A carne de Augustine.

Se ele também a via, ela não tinha certeza. O brilho escarlate de seus olhos impossibilitava adivinhar-lhes o foco. Mas era quase certeza de que ele a via, por que outra razão estaria parado em frente a sua casa? À distância de alguns meros passos em suas patas gigantescas.

Então, era isso. Augustine agora saberia que no mundo haviam demônios, mas não teria tempo de contar a ninguém, porque ele a mataria. Ou talvez a levasse para as profundezas, onde tiraria toda a sua pele e faria sua alma sofrer por toda a eternidade, clamando pelo alívio da dor que jamais finda.

Lembrou-se do bloquinho de recados sobre a mesinha do telefone. Talvez pudesse escrever qualquer coisa antes do ataque 'Demônios existem.'

Ou isso a faria parecer suicida? Haveriam todos aqueles seus amigos, inclinados à Filosofia, que caracterizariam o demônio de que falava como a metáfora do pensamento depressivo. Precisava ser algo mais urgente. Talvez, se tivesse lido a bíblia com mais atenção, pudesse agora citar algum trecho em que o demônio aparece. Ainda daria margem à especulação literária.

'Fui atacada por um demônio' poderia ser mais efetivo, mas... não. O demônio seria agora o próprio ser humano. Algum tarado estuprador maníaco. Um fugitivo qualquer da última notícia do jornal das oito.

Ademais, Augustine não conseguia afastar-se da janela. Seus olhos desejavam com todas as forças parar de ver aquela criatura temível por detrás dos vidros mas, ao mesmo tempo, estavam hipnotizados pela visão grotesca e medonha, tão incomum, tão singular naquela pacata ruazinha da periferia de São Paulo.

Soltou um suspiro entrecortado de medo quando as luzes dos postes começaram a apagar, com estrondo,  uma a uma, desde o fim da rua. Era impressão sua ou o demônio passou a língua por sobre os dentes? Agora, com tão pouca luz (apenas a etérea luz do luar), somente podia ver o par de rubis que eram os olhos da criatura. Era inegável que havia beleza neles, assim separados da visão do corpo inteiro. Talvez pudesse elogiá-los, não soubesse seu significado.

Espere... os rubis... pareciam mais próximos agora. Pareciam dançar como a chama de velas em procissão. E vinham... para ela. Chegou o momento. Suava frio, tremia tanto que seus dentes batiam uns contra os outros e ouvia a própria respiração ecoar pela casa vazia. Sentia as pernas ficando moles e, talvez fosse sofrimento premeditado, mas podia sentir algo, uma energia maligna, puxando-a para o chão. Ou para além dele.

Lembrou-se da irmã mais velha dizendo, quando temeu pular o muro de casa para brincar na rua "do chão não passa". Era seguro saber que o chão era uma barreira impenetrável, mas... e se não fosse? Onde ele a levaria?

O bloquinho de papel agora parecia tão distante, e onde estava mesmo a caneta? Como iria escrever se seus dedos agora eram feitos de trêmula gelatina?

Os lábios perderam a cor e estavam frios como mármore. Sussurrou 'Deus' seguidas vezes, mas algo lhe dizia que isso, agora, não teria serventia.

Os rubis se apagaram.

Teria sido tudo uma ilusão? Mas a rua ainda estava mergulhada em breu, e o chão ainda a puxava. E havia aquele cheiro, ou aquela presença úmida no ar, quase palpável, lhe dizendo que não. Talvez tivesse sido apenas um aviso, um aviso de que deveria ser uma pessoa melhor, mais religiosa, mais filantrópica, mais paciente, amar a todos e...

Algo se remexeu atrás dela. Algo grande e pesado. Arrastou uma pata pelo chão, cambaleava e respirava alto. Outra pata arrastou-se, devagar e longamente. Sentiu seu bafo fedorento na nuca. Chorou uma lágrima de medo e arrependimento. Tremia tanto que sua visão estava embaralhada, embaralhada demais até para se manter de pé.

Então caiu. As costas bateram primeiro em algo de consistência asquerosa, como uma parede cheia de musgo. E então o corpo inteiro parecia ser sugado para o fim, para baixo do chão.

"Do chão não passa."

Passou.

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